segunda-feira, 8 de dezembro de 2008






O PEDIDO DE VALENTE


Quando Valente dobrou a esquina daquela malfadada rua, já sabia o que o aguardava. Meses a fio ouvira aquela conversa. Agora era pra valer! Parece que a coisa era moda.

O que o assustava é que, se as coisas continuassem assim, perderia até sua principal característica. Seu faro, com certeza, iria perder-se em meio a tantos cheiros desconhecidos. Teria que exercitar-se, que reaprender os novos aromas que se anunciavam.

Valente avançava, cabisbaixo, rua acima. Nada mais seria como antes. Perderia a espontaneidade pra tudo. Ficaria embaralhado frente a uma parceira. E se ela também adotasse a mesma moda? Até que pra ela podia-se compreender tal revolução estética.

Valente, definitivamente, não se conformava com tais modernismos. Na verdade, as coisas deviam ficar como sempre tinham sido. Tudo bem definido: cheiros, cores, o visual de cada um, no original, de nascença.

E quando tivesse que levantar a perna? Será que teria alguma mudança? E quando estivesse a fim..., como identificaria a sua cara-metade “da hora”? Será que conseguiria definir o cheiro do prazer, em meio a tantos outros cheiros? Isso, decididamente, não ia dar certo. Ia acabar se confundindo. E daí? Babaus... Ia ser um salve-se quem puder! Por que tinham que inventar tais coisas?

Enquanto preparava-se para o sacrifício, ia meditando sobre os velhos e bons tempos.

Que saudade daquele quintal, lá no bairro Petrópolis, em que vagava por entre as árvores, tendo sempre ao lado Isadora, sua companheira. Sabia perfeitamente quando ela estava “naqueles dias”. E “aqueles” eram os melhores dias de sua vida. Tudo seguindo o seu curso natural. Nada de inovações. Tudo previsto e instintivamente perseguido.

Mas aí...dona Gertrudes, sempre tão carinhosa, um dia, resolveu entregá-lo à Beatriz, sua irmã, que o levou para morar com ela. Sabe onde? Num apartamento. A coisa mais horrorosa! Tinha sido levado para fazer-lhe companhia, pois ela enviuvara há pouco. Desse dia em diante, sua vida começou a mudar. E, para pior. Agora, porém, chegara ao fundo do poço. Sentia que, qualquer dia, acabaria virando Valentina. Com esses pensamentos sombrios, adentrou, a contragosto, na tal casa. Sentia que ali começaria sua derrocada como espécie.

Uma voz suave convidou-o a entrar:

-Por aqui, meu fofo! Beatriz voltaria, em três horas, para buscá-lo.

Dali em diante, viu-se rodeado por mais duas vozes meigas a com ele conversar. E, principalmente, a conversarem entre si. O que se sucedeu, a partir daquele momento, vale uma história e tanto.

Depois de muita conversa, resolveram iniciar a transformação de forma “light”. Nada muito agressivo!

Mergulharam-no numa banheira muuuuuuito cheirosa. Com as barbas de molho e o resto também, ficou a meditar por minutos nessa nova vida que se anunciava. Vira e mexe estaria nesse salão de horrores, novamente.

E era shampoo, condicionador... E dê-lhe água. De repente, aquela água foi sumindo para outra ir chegando. E o pobre ali mergulhado. O cheiro agora era bem definido: era de chocolate. Conversaram as moças entre si que era a hora da hidratação de chocolate. Pra que tanto cheiro? Pensou com seus botões: isso não vai dar certo...

Sentindo-se mais lambido que terneiro recém-nascido, foi retirado da banheira e levado para o soprador. E depois, claro, para o secador: que são coisas diferentes.

Daí partiram para um boa escovada e mais um spray perfumado, com o qual quase tonteou. Para finalizar, um laçarote cor-de-rosa pra segurar a franja teimosa. E com os olhos, agora, bem à mostra foi que avistou Beatriz chegando toda feliz.

A que ponto chegou! Que inveja do “alemão”! Ele é um amigo que circula pela rua onde Valente mora. Sempre de bem com a vida. Todos o conhecem e ele a todos cumprimenta, balançando o rabo: mais faceiro que pinto em quirela. Dão-lhe, todos os dias, o que comer. É freguês do boteco da esquina. Vive solto a vadiar. Não tem obrigações. Pode fazer cocô e xixi em qualquer lugar. Encontra-se, sempre que dá no jeito, com as gurias da zona, isto é, da zona onde mora. É bonito, aloirado, garboso. Vive, por assim dizer, sem frescuras. Isso é que é vida!

Agora, essa sua vidinha está se tornando um saco! Na verdade, o que mais o preocupa é a questão dos cheiros, dos odores misturados com os perfumes. Está perdendo até o apurado faro, seu ponto forte. E o pior...acredita que terá dificuldades, daqui pra frente, em distinguir aquele cheiro tão bem-vindo, que há tempo não mais encontra, por absoluta clausura. Já anda até destreinado! E se facilitar, poderá enganar-se feio. Já pensou? Que vexame!

Talvez o melhor seja mesmo acomodar-se em sua nova caminha e sonhar com a chapinha, a escova de morango ou chocolate e com a vinhoterapia pra pets. Disseram, lá na petshop, que vai revitalizar seu pelo através do poder antioxidante dos polifenóis contidos na uva, além de serem ricos em vitaminas A, C, e E.

A única dúvida é se isso vai torná-lo mais feliz. A clausura já se instalou mesmo. Parece não haver saída, senão deitar e gozar. Gozar? Isso é coisa pra geração passada. Essa nova espécie canina anda mais frustrada que os seus próprios donos. Aliás, já incorporaram todos os tiques e manias dos seus senhores. Sabe de uma coisa?

Se ficar muito difícil aguentar essa barra, Valente acha que vai exigir um apoio psicológico, ingressando nesses grupos de terapia para cães. Afinal, já é praticamente um ser humano! Escovam-lhe diariamente os dentes, faz xixi e cocô numa espécie de vaso sanitário, come salgadinhos, waffle com chocolate, tem à sua disposição toda a sorte de petiscos. O que mais querem? Que fale? Pô, aí seria demais... Mas, se fosse possível, diria a Beatriz que o trate com mais carinho, que o afague, que seja menos rude. Pois é isso que todo ser vivo mais quer. Não interessa essa formosura toda, que é só aparência, se não nos relacionamos com amor. E, se não for pedir muito, que lhe dê um pouquinho mais de liberdade. Afinal, a espécie precisa perpetuar-se. E disso vocês, humanos, entendem muito bem.


terça-feira, 25 de novembro de 2008






DE PLANTÃO...


Pois a gauchada andava mais inquieta que cavalo sarnento. Aquela notícia surgira mais rápida que bote de cobra. E foi assim, de repente, que Gumercindo viu-se cercado por vizinhos que vinham em busca de mais informações.

Afinal, coisas estranhas andavam acontecendo bem perto dali, há apenas alguns quilômetros. Talvez Clóvis, seu filho, que era engenheiro agrônomo, pudesse esclarecer o que estava ocorrendo lá pras bandas de Santa Catarina.

Mas, Gumercindo foi logo informando que seu filho não se encontrava. Tinha ido à Capital e lá permaneceria por uns dois meses, completando um curso de especialização.

A indiada, porém, tinha vindo decidida a buscar alguma explicação para tais fenômenos, no mínimo estranhos.

Frustrados por não encontrarem Clóvis, apearam mesmo assim dos cavalos e passaram a confabular. Tinham que tomar uma decisão. Pela descrição de quem estivera por lá, a coisa prenunciava possível entrevero. E o pior é que o inimigo não aparecera: só deixara rastros. De qualquer maneira, cautela era necessário nessa hora. Mas atitudes deviam ser tomadas. A mais sensata, após votação, pareceu ser acampar sobre a coxilha mais próxima à fronteira. Ficar ali por um tempo, de plantão. Depois, ir-se aprochegando despacito...

Tomada a decisão, já, de pronto, apareceram uns tauras para seguirem na linha de frente.

Entonces, dando adeus ao amigo Gumercindo, foram-se campo afora. Mas, sem se aperceberem, lá se foi também, no meio da indiada, o sobrinho de Gumercindo, o Andrezinho, 16 anos, um guri muito metido.

Como sempre, tinha vindo passar as férias escolares na casa do tio. Nos últimos anos, mudara-se pra Capital, onde estudava. Estava cursando o 2º Grau. A cada visita, trazia novidades da cidade grande.

Pois aquela notícia deixara o guri todo assanhado. Não pensou duas vezes: meteu-se, por entre a indiada, com seu tordilho.

Depois de muito cavalgar, quando a barriga já andava pelo espinhaço e a noite caíra, chegaram a tal coxilha. Só então, deram com os olhos no guri. Mas aí já era tarde.

Resolveram apear, acampando todos juntos, exceto alguns poucos que se acomodaram no topo da coxilha para melhor enxergar.

Tinham trazido o suficiente para passarem uns três dias, não mais. Esse seria o tempo necessário para descobrirem o que por ali estava acontecendo. Armas, munição e homens de prontidão: era o principal. O resto dava-se um jeito: charque, mate e café de chaleira.

Andrezinho já se sentia no meio do entrevero que, com certeza, iria acontecer. Seria uma experiência e tanto. Logo ele que pretendia ser jornalista, mais precisamente um correspondente de guerra. E tratou de preparar seus apetrechos: bloco, caneta, câmera fotográfica e um aparelhozinho, minúsculo, em que se viam imagens, que nem num televisor em miniatura. Coisas de guri da cidade.

Enquanto isso, os tauras da linha de frente, que tinham trazido um binóculo emprestado do patrão Afrânio, dono da Boqueirão, se aboletaram no cume da elevação. E, de lá, começaram a ver luzes que se acendiam e se apagavam, como se estivessem a sinalizar algo. Quando o facho de luz afastou-se um pouco, os cavaleiros da linha de frente, no meio da escuridão, viram dois círculos que se desenhavam sozinhos. Era como se alguém, de dentro da terra, de baixo pra cima, fosse traçando, com o auxílio de um gigantesco compasso, linhas circulares. E a indiada esperando, ansiosa, o embate. Quando vissem os adversários, avisariam a retaguarda e avançariam de surpresa. Mas nada! Ninguém apareceu: nem cavaleiro, nem cavalo. Nada aconteceu. Só a escuridão... Assim, passou-se a noite.

De manhãzinha, quando a claridade se instalou, puderam, então, observar os tais círculos por entre a plantação, toda ouriçada, como se uma força interna a tivesse empurrado de baixo para cima.

A peonada entreolhou-se e começou a desconfiar de que aquela notícia da tal de máquina, que o patrão Afrânio contara a eles, poderia ser a chave para tão estranho fenômeno.

E saíram dali em direção aos homens da retaguarda, certos de que a revelação, brevemente, chegaria aos ouvidos do mundo.

Já imaginaste, tchê? Se Deus é mesmo brasileiro?

Pois a tal máquina, que anda em busca de Deus e que está sob reparos, um tal de acelerador de não sei quê, parece que está por chegar ao seu destino. Seria a maior revelação para a humanidade. A indiada acha até que foi sabotagem. Quando o destino final estava ali e ela pronta pra explodir, seguraram a dita. O máximo que ela conseguiu foi ouriçar as palhas da plantação, estacando logo após. Mas deixou marcas. E o mais interessante... Por mais alguns poucos quilômetros, a tal máquina teria irrompido em solo rio-grandense. Já pensaste? O papa, que nos visitou, já era gaúcho, ucho, ucho! Agora, imagina só! Deus sendo gaúcho, ucho, ucho!

E o Andrezinho?

Pois não foi dessa vez que ele conseguiu estar no “front”, sendo testemunha ocular dos sonhados embates.

Mas como é um guri bem informado, já recebeu por e.mail informações de que na Inglaterra, há alguns anos atrás, uns gaiatos fizeram esses mesmos desenhos em plantações de trigo. Só pra mexer com o imaginário popular.

Mesmo com essas informações, o guri acha que não vai adiantar repassá-las. O pessoal não ia acreditar.

E pelo que pôde observar da peonada, eles estão esperando que a máquina seja consertada. Voltaram às lides campeiras, por ora. Mas, estão de olho. Aliás, nem pregam mais o olho. Tem sempre alguém de plantão.




domingo, 9 de novembro de 2008




GESTO REVELADOR


A exteriorização de certos comportamentos sociais pode revestir-se de um racismo exacerbado, sem aparentemente sê-lo.

Aqui, reporto-me a uma cena, contada por minha tia Carolina, ocorrida lá pelos idos de 1950.

Na época do chamado “footing” na Rua da Praia, sua irmã mais nova passeava com amigas em uma tarde outonal. Pela rua, circulavam inúmeras pessoas.

De repente, numa virada de esquina, um homem, de cor preta, esbarrou na dita senhorita, encostando, de leve, seu braço contra o ombro dela. A cena que se seguiu, a mim contada, jamais desapareceu do meu olhar de adolescente, ouvinte atenta das histórias de família. Pois, não é que aquela moça, rapidamente, levara sua mão ao ombro, fazendo um gesto, como a retirar de si uma sujeira que caíra sobre ela. Esclareça-se que esta cena foi contada à tia Carolina pela própria autora do gesto, que revelou raiva e nojo pelo inusitado “encontro”.

Esse episódio relatado, já àquela época, indignara-me profundamente. E assim manteve-se tal cena, como que congelada ao longo dos anos, servindo de mote, hoje, para esta exposição sobre tão delicado tema: o do racismo.

Sabe-se que o racismo é uma das formas de violência mais sub-reptícia, por vezes de difícil percepção, mas nem por isso menos violenta.
Entre 1798 e 1872, conforme apontamentos históricos, os afro-brasileiros, escravos e livres, eram duas vezes mais numerosos do que a população branca. É claro que a elite se preocupava, pois em menor número temia insurreições, que já se instalavam em alguns redutos. Sendo os negros, na sua maioria, de temperamento dócil, seria muito mais proveitoso economicamente libertá-los, mantendo-os sob um tacão tão cruel quanto antes, porém politicamente mais ao gosto de nações ditas desenvolvidas, com as quais o Brasil já começava a se tornar parceiro.

Portanto, libertar os escravos, “abrandar” a visão sobre o negro, mantendo-o na condição de negro, pobre e trabalhando nos campos dos brancos, é o que pareceu mais conveniente à época. Somadas essas circunstâncias ao caráter dócil do homem africano, foi fácil libertá-los apenas “pro forma”.

Sabe-se, por outro lado, que um racismo “inconsciente” perpassa, inclusive, por textos escolares, onde, muitas vezes, a composição étnica de um determinado povo é apresentada com laivos de inferioridade. Isso está presente em excertos, que podem ser lidos e bem apreciados no capítulo Raças e Povos da Terra, do livro Mentiras que Parecem Verdades, escrito por Marisa Bonazzi e Umberto Eco (edição de 1972).

Particularmente, no referido capítulo, os exemplos fornecidos por esses pequenos textos apontam o caráter sutil da discriminação racial, presente em todas as raças e povos (páginas 55 e 56).

Esse livro, escrito a partir da análise de textos escolares italianos, traz, em seu bojo, críticas severas a vários tipos e formas de discriminação e, principalmente, à forma como é imposta uma espécie de submissão ideológico-curricular, onde determinadas“imbecilidades solenes”, como diz o apresentador da obra, Samir Curi Messerani, “nos inculcaram nas escolas, abusando da ingenuidade do leitor infantil”.

Os textos Páginas Belas, O Negro é Estúpido e o Destino da África tratam do racismo contra o negro.
Esclarece-se que, na mesma abordagem, outros tantos textos referem-se a outras etnias como os chineses, os alemães, os árabes e os próprios italianos miseráveis.

O racismo é como um cancro que corrói tudo em volta, acabando por exterminar seus gestadores em finais de vida violentos, encerrando períodos históricos de forma sangrenta.

Quando os níveis de tensão chegam ao ápice, ele explode de forma violenta. O que, até certo ponto, é preferível, pois possibilita, como na sociedade americana, a reconstrução do indivíduo e sua consequente inclusão no cenário mundial (por ex. políticos americanos, Secretários de Estado, etc).

No caso brasileiro, a situação é muito mais delicada, porque mais sutil. Aqui também existe racismo não apenas contra negros, e sempre de forma velada, escamoteada. A diferença é que com os negros é mais explícita por razões históricas. Hoje, essa prática já sofre sanções. É o que dispõe a Constituição Federal de 1988, através de seus incisos XLI e XLII, bem como leis e decretos posteriores relativos ao tema.

Assim, racismo é um sentimento existente desde há muito. Dir-se-ia desde sempre. Talvez, tê-lo seja próprio de alguns seres humanos.
É a pequenez da alma, a soberba da intolerância, o pisotear sobre o seu semelhante. É a incapacidade de ver-se no outro.
É, por exemplo, não convidar um colega negro para a festinha de aniversário, pois, talvez, ele não seja bem recebido pelos parentes mais velhos, ranço de um passado não tão distante, mas deveras vergonhoso.

Logo, a discriminação disfarçada, dissimulada, que se exterioriza sutilmente, é a pior de todas. É aquela que se revela num gesto despercebido, banal, corriqueiro. Às vezes, até numa palavra aparentemente jocosa, mas não menos ofensiva.

E, quando essa discriminação se instala, é de difícil extração.
São pequenos gestos reveladores, que não mais chamam a atenção.
Por isso, parafraseando Martin Luther King:
- É melhor surpreender-se, defrontar-se com o grito dos maus, do que com o silêncio dos “ditos bons”. Silêncio eivado de latente desprezo pelo outro, acrescente-se.


OBS: Este artigo foi escrito no ano de 2007, a partir de temas abordados em encontros de Produção Textual, realizados na Faculdade de Educação da PUC/RS.


Hoje, retomando o assunto, penso que a sociedade americana superou-se. Elegeu para seu Presidente um negro.
Foi um gesto que revela uma efetiva mudança e atesta a grandeza do país.
Tomara que, como disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano, em entrevista publicada por Zero Hora na data de ontem, o presidente recém-eleito “não esqueça que a Casa Branca foi construída por escravos negros. Chegou a hora de os Estados Unidos se libertarem da sua pesada herança racista”.
Por aqui, um dia, ainda chegaremos lá.
Mas as dificuldades de ascensão do negro, na escala social, continuam enormes.

Urge que uma educação pública de qualidade se instale, cumprindo papel relevante para o desenvolvimento pleno de todos os cidadãos, indistintamente. É o que se almeja.

E o exemplo do novo presidente, com uma sólida educação formal, atesta a importância do saber na ascensão do indivíduo em sociedade. Mas só isso também não basta. É necessário que um novo olhar se detenha nas diferenças culturais em que estamos todos inseridos. É algo bem mais profundo. Exige de nós a capacidade de ver-se no outro, apesar dessas diferenças: de sentir-se humano. E, como tal, único ser vivo capaz de promover mudanças, pois detentor de livre-arbítrio.

Talvez, Barack consiga unir o que há de melhor na cultura africana com a filosofia dos povos nativos americanos. Desse caldo, que diz não existir “dualismo”, e de que a vida é um ciclo contínuo e somos um todo com a natureza, talvez consiga ele romper com a tendência ocidental de estabelecer, sempre, um conflito de opostos. Pois isso, na essência, não existe.

Lembremo-nos de Rubem Alves, educador emérito, que disse:
“Sem a educação das sensibilidades, todas as habilidades são tolas e sem sentido”.

Utopia?
Mas é bom sonhar...



Leia a notícia.

sábado, 1 de novembro de 2008





ENFIM, NIVELADOS...

“Me dá uma moeda pro pão?”

Que cena mais contundente! Os olhos mortiços do guri, ainda pequeno, espelham a cara da fome. Encolhido junto a uma parede, próximo à confeitaria, seu pedido repete à exaustão. A maioria não se detém.

Parece que ninguém mais ouve, enxerga ou se incomoda com essas cenas. Ficou combinado que isso é assim mesmo. Uns têm, outros não têm. Uns vivem, outros vegetam. Uns exploram, outros são explorados.

E os dias arrastam-se para uns, à semelhança de seus fétidos corpos arrastando-se pelas calçadas.

E os dias voam para outros, à semelhança de seus velozes carros, de seus aparatos tecnológicos que consigo carregam. Correm porque o feriado se aproxima. Terão tempo para uma escapada, que pode ser logo ali, há alguns bons quilômetros ou até há alguns milhares de quilômetros. Pra que existe avião?

Que coisa mais chata essa gente esparramada sobre calçadas de avenidas tão nobres. É uma verdadeira poluição visual.

Vamos buscar outros ares. Pelo menos, vamos mudar os cenários e ver essa mesma gente espalhada sobre calçadas de outros lugares. Oh, pobres coitados! Vamos nos engajar em campanhas mundiais. Ao menos estão eles bem longe de nossos olhos. A gente contribui e acalma a consciência. E já está de bom tamanho a nossa preocupação com o social. Os esfarrapados daqui, afinal, vivem num país tropical. Não devem sofrer tanto com o frio.

Pois, a moça parou. Quis dar a ele uma moeda de um real pra comprar pão, mas o guri pediu:
“A senhora compra, tia, e me dá”.

Ficou sentado, encolhidinho, esperando. Será que ele sabe qual é o “seu lugar”? Não quis entrar, nem junto com a moça. O seu lugar é ali fora. É, mais ou menos, como o cachorrinho que deve ficar fora do estabelecimento. É pior. É muito pior.

Nessas alturas, a moça lembrou-se da cena fotografada, onde caixões e caixas abertas e amontoadas, fétidas, com restos mortais, esperam destino para possível incineração, por falta de pagamento na manutenção dos túmulos.

Tem diferença entre pagar e não pagar? Parece que sim. Será mesmo?
Se pagar, fica fechadinho, guardadinho. Se não pagar, vai pro forno. Tem diferença?

E essa gente esparramada pelas calçadas? Vai pra onde? Pra vala comum, que está de bom tamanho.

“Pois à terra dada não se abre a boca”- trecho do poema dramático Morte e Vida Severina do poeta maior João Cabral de Melo Neto – mostra-nos que esta vida pode ser mais Severina, ou menos.



trecho de Morte e Vida Severina

Mas o melhor é que, depois do passamento, tudo se resume a um lugar mais fundo ou mais raso, mais largo ou mais estreito, mais abafado, ou nem tanto. Talvez, mais enfeitado. Agora, isso são apenas detalhes.

O importante é que, finalmente, estarão todos nivelados. Nivelados ao rés do chão, ou ao rés da parede. Talvez essa gente, que nada teve, até se sinta mais larga, mais ancha do que quando estava no mundo, como diz o verso do poeta.

Mas ao fim, todos, com certeza, estaremos nivelados.
Pois o sopro divino não faz distinções. E, como sabemos, estamos todos de passagem.

Reflitamos sobre isso nesse Dia de Finados.


sexta-feira, 31 de outubro de 2008






DAS ÁGUAS...


Estela vai desviando das poças d’água. Busca com os olhos o lugar melhor, na calçada, para pisar. Chove muito. Como tem chovido!

Uma imagem assalta seu pensamento. Aquela da crônica que, há tempos, escrevera.

A cena do redemoinho, da avalanche que se avizinha, de um movimento que começa lento e vai-se acelerando: até o irromper, por estreita passagem, de um novo ser. Lá esteve, por bom tempo, imerso em meio líquido. Seu corpo é mais de 70% composto de água. Aliás, o que une toda a humanidade, bem como toda forma de vida, é a água. A própria superfície do nosso planeta, em sua maior parte, é água.

A água é sempre benfazeja. Ela alimenta, cura, purifica, limpa. Ela faz parte de nós. Estela vai assim divagando. Seu pensamento borboleteia, buscando ideias. Esbarra em conceitos, se embaraça em teorias.

De algum lugar, um pássaro cantor interrompe seu pensar. Mas pensar ainda é próprio de sua espécie. Assim, persevera e continua estabelecendo comparações, analogias. Busca, por assim dizer, a convicção da melhor opção. Para si, para o outro ou para ambos?

Puxa, é difícil! Melhor seria ter permanecido deitada em ventre esplêndido, ao som de um mar profundo e à luz dos olhos da mamãe, que cuidava dela o tempo inteiro.

Mas, que nada! Hoje, Estela está aqui: pronta para decidir. Ela que é quase só água, não pode colaborar para o barco fazer água. Que responsabilidade! E disseram a ela que isso é ter espírito cívico. Será?

Será que ela deve depositar sempre em outras mãos a solução de problemas em que se sente tão omissa? Será que os vizinhos da sua rua não poderiam, quem sabe, resolver aqueles problemas tão próximos a si próprios? E os da rua seguinte, outros problemas próximos a eles?

Oh, quantas questões! Pensar é preciso. Temos o maior poder à nossa disposição que é o pensamento. O problema é aprendermos a usá-lo, guiando-o pelas veredas do bem comum. Há que se ter um olhar estendido ao coletivo e que ações concretas sejam implementadas. Que discurso mais bonito, Estela!

Deixa os discursos pra eles! Trata de ti, dos teus e, se fores mesmo uma cidadã consciente, cuida, dentro do possível, daqueles a tua volta. Que já fazes muito!

Quanto à chuva, tenho certeza de que esperas com ansiedade que ela lave por completo a sujeira que, porventura, tenha ficado por debaixo dos discursos. Que ela cure as ofensas ditas e as injustiças cometidas: tudo assistido por todos nós. Que ela alimente novos projetos e aqueles outros tantos em andamento.

E, principalmente, que nessa hora derradeira, irrompa, desse caldo de águas um tanto quanto turvas, um condutor à altura de Estela e de seus concidadãos.

E que se CONFIRME o acerto na escolha com a tecla CONFIRMA.


domingo, 12 de outubro de 2008





DESVIOS



-“Pô, cara, se a gente róba, é robo mesmo. Agora, se é os cara lá de cima, é desviu. Tu já viu?

-É..."


Pois é, a conversa foi captada por ouvidos e olhos atentos.

Os dois homens sentados no chão, em andrajos, junto à grade que circunda a Fonte Talavera, em pleno coração da cidade, estavam ali a falar sobre os vários nomes que podemos dar às atitudes manifestadas por uns e outros.

Que exercício interessante, considerando-se os seus interlocutores!

Estavam eles, ali, desviados de sua função: que é não pensar. Como ousam!

Isso é, com certeza, um desvio. Mas são tantos os desvios... Até é temerário enumerá-los.

Desviemos o foco. Partamos para longe, porque é mais seguro.

Pois até o prêmio mais cobiçado, num mundo tão conturbado por guerras, dizem que pode ter tido seus desvios. Algumas indicações repousariam sobre interesses escusos.

Desvio também houve, quando aqueles imigrantes africanos desaparecidos, que se suspeita terem sido atirados ao mar por contrabandistas de pessoas, tiveram seus sonhos desviados por uma rota sem volta.

Desvios excessivos, também, cometeram os executivos que estavam no comando de grandes bancos internacionais. Que grandes desvios!

Comentam que até o cartel do petróleo sofreu com toda essa turbulência. Terão que fazer, provavelmente, um corte na sua produção. Haverá necessidade de reorganizar as peças do xadrez. Poderemos todos levar um xeque-mate.

O risco de uma recessão econômica mundial é assustador. Mas, seus comandantes usarão todas as suas armas, artimanhas, simulações, mentiras, todo o arsenal semântico disponível, ou até criado às pressas, para superar a tal crise avassaladora. Saberão distribuir os prejuízos dessa crise. Despejando mais sobre a base da pirâmide, como sempre.

E os dois mendigos?
Continuarão cantando o samba Deixa a Vida me Levar, até que a morte os abocanhe.

Agora, hoje, neste Dia da Criança, o desvio de um catador de latinha, do seu habitual caminho, fez-me lembrar de alguns gestos e atitudes que revelam o nosso “eu criança”.

Ele, atravessando a rua por onde habitualmente passa, deteve-se embaixo de uma cerejeira-do-mato. Saltou de sua pequena bicicleta, passando a colher suas frutinhas. Catava também as do chão, as do meio-fio, pondo-as no bolso da camisa e da calça. Comia, com sofreguidão, e saltitava ao redor da árvore como uma criança.

Pois até dizem que a tal frutinha quase não tem gosto. Mas aquele gosto, com certeza, lembrava o de sua infância. Reviveu, por instantes, o guri de outrora.

Eu, por minha vez, flagrei-me com a mão esquerda fechadinha, escondendo o polegar embaixo dos demais dedos, durante o almoço, como quando era criança. Aliás, um hábito que, vez por outra, assoma e me reporta ao passado, já distante.

Esses, com certeza, são desvios momentâneos, que iluminam nosso dia a dia.

Sua fonte é recuada no tempo e só faz bem à alma.



segunda-feira, 6 de outubro de 2008













O RETORNO DOS DESGARRADOS

Nada como dar uma esticada até o Nordeste, não é?

Pois os jovenzinhos saíram, como sempre fazem, em busca de alimento. Só que as águas estavam tão quentinhas, e tão repletas de comida, que ficou difícil resistir à tentação de esticar mais um pouquinho a viagem anual que realizam.

Aqueles mais afoitos acabaram morrendo lá pras bandas de Sergipe e do Espírito Santo. Mas, os que permaneceram pela Bahia, foram mais sortudos. Eles bem que quiseram deixá-la, mas a Bahia com seu encanto, seu axé, seu mar piscoso, não os deixou sair.

E lá ficaram eles: brincando em suas águas. Dizem que foram vistos. Denunciada sua presença, foram capturados, com toda a garantia de sua integridade física. Após, embarcados em avião da FAB num voo de Salvador até Pelotas. Aqui, no Estado, serão acomodados em um caminhão refrigerado e levados ao Centro de Recuperação de Animais Marinhos (CRAM), em Rio Grande. Nesse local, serão tratados e, posteriormente, liberados para voltarem ao lar: as colônias do Sul da Argentina (Patagônia) e do Chile. A soltura dos animais no oceano tem o apoio da Petrobrás e do Exército.

Lá, então, darão continuidade à espécie.

Que coisa maravilhosa! Perder-se e ter gente sempre atenta a guiá-los de novo ao lar. Gente que se preocupa com os animais.

Pois, os pinguins-de-magalhães voltaram para casa.

Agora, o que preocupa é o indivíduo que pediu para voltar ao Presídio Central. Embora até tivesse conseguido um trabalho, estava foragido. Portanto, precisava cumprir a pena imposta. Daí, sua decisão de retornar.

Pelo que disse, andava passando fome. Então, resolveu entregar-se, cumprir a pena para, depois, voltar a trabalhar.

Considerando-se a atitude sensata do condenado, paira a preocupação acerca de seu retorno ao Central.

Imaginando-se aquele local como provisório, está ele muito longe de ser aquilo que representou o Centro de Recuperação de Animais Marinhos para os pinguins: a morada ideal para alguém se recuperar. Pelo contrário, segundo manifestação do Exmo. Sr. Juiz, responsável pela Fiscalização de Presídios na Região Metropolitana, as condições do Central deixaram-no, quando de sua visita ao estabelecimento, perplexo e envergonhado de ser gaúcho.

Portanto, quando de lá sair, o cidadão referido não estará recuperado. E a sociedade, que o espera, não tem com ele compromisso algum de ajudá-lo na busca de emprego e de melhores condições.

Talvez o problema seja mais complexo que o dos pinguins. Jogá-los ao mar, próximo à sua região de origem, é o bastante. Eles viram-se sozinhos. E, em suas colônias, sabem proteger-se dos demais predadores. Afinal, podem contar com os da sua espécie.

Parece que não é o que acontece conosco. Somos predadores de nós mesmos.

Precisamos, na verdade, aprender mais com os animais.

Já imaginaram? Se nós, os humanos, colocássemos todo o nosso potencial construtivo e de solidariedade em favor dos da nossa espécie?

Infelizmente, o acolhimento dos pinguins, tanto por nós, quanto pelos de sua espécie, causa inveja!