quarta-feira, 13 de maio de 2009








UMA HOMENAGEM


Sobe-se uma pequena rampa, que leva ao lugar procurado por todos que dele necessitam. E todos estão meio apressados quando lá chegam.

Ao adentrar-se, como que resplandece todo o recinto. Inunda-se de luz. Exala dali, também, um perfume.

Maitê, quando lá esteve, constatou, por algum tempo, que as pessoas, ao entrarem, comentavam entre si ou murmuravam consigo mesmas expressões tipo:
-Que cheirinho bom!
-Ai, que bom!
-Que cheiro gostoso!
-Hum...!

As paredes revestidas de plaquetas brancas, muito limpas, demonstram o asseio com que são tratadas.
De cada um dos vãos, que dividem as pequenas janelas, pendem vasos com folhagens verdadeiras, todas de uma mesma espécie, adornadas por pequenos ramos e flores artificiais, todas na cor azul e branca, combinando entre si. São dezessete vasos ao todo, espalhados por vãos e sobre as meias-paredes que dividem os espaços. Em um dos vasos, o bem central, esconde-se uma varinha de incenso. Daí espalha-se o perfume que, diga-se de passagem, espraia-se no entorno do recinto, atingindo, inclusive, alguns bancos próximos. Sobre uma das paredes, pende um arranjo feito com garrafas pet, na mesma tonalidade das rosas artificiais que enfeitam os vasos. No início de dezembro, essas flores são substituídas por outras de cor vermelha, a prenunciar a chegada do Natal.

É constante o cuidado com a limpeza do chão. E, ao que parece, de dois em dois dias, é feita uma lavação e escovação completa. Portanto, o ambiente é limpo e cheiroso.

Quem recepciona os usuários está sempre atenta, conduzindo, informando e auxiliando quem lá chega. Veste uniforme, limpo, impecável. Do semblante brota uma luz que se despeja num sorriso.

Para quem se detém por instantes e troca com ela algumas palavras percebe o jeito prestativo com que é tratado.
Maitê deteve-se mais do que o habitual. E pôde constatar o que é trabalhar “com amor”.

Encantada, Maitê ficou por lá conversando. Descobriu, então, que todos os enfeites (vasos, folhagens, flores, arranjo e incenso) foram comprados pela própria funcionária, com seu próprio dinheiro. No caso do incenso, a compra é constante. Mas isso é apenas um detalhe. O mais importante é seu trabalho, digamos assim, socioeducativo.

Assim, a comunidade indígena que circula por lá, por exemplo, (mães e seus filhos) foi aprendendo noções de higiene por eles desconhecida. Tudo graças às orientações da funcionária.
Mas, quando é necessário, sabe ser “durona”. Isso acontece toda vez que certas “tribos” tentam usar o local para outros fins, que não os adequados àquele ambiente.

Agora, o principal foi o discurso da funcionária, revelador em si, e que respondeu à curiosidade de Maitê. Pois, o dito foi mais ou menos assim:

“O nosso ambiente de trabalho não é dos melhores. Recebemos todo tipo de público que, aqui, vem para fazer “suas necessidades”. Se a gente vier trabalhar suja, desleixada, não mantendo o lugar limpo, não terá vontade, incentivo de trabalhar. Ficará um ambiente “muito pesado”. E, afinal, a gente fica aqui dentro 12 horas. O nosso ambiente de trabalho deve ser constantemente limpo e a gente também deve estar limpa para poder se sentir bem. Se não, vamos nos sentir deprimidos. Sabe, todo mundo tem seus problemas. Mas temos que deixar os nossos problemas lá fora. E procurar chegar, aqui, bem. Por que é que temos que conviver com o mau cheiro, característico desses lugares? Fica muito melhor trabalhar num lugar limpo e cheiroso. Não acha?
Maitê acha que sim. Concorda, integralmente, com a postura dessa funcionária.

Pois é, está a falar-se, sabem do quê? De um banheiro existente no Parque da Redenção.
É um banheiro diferente. Ou melhor, quem ali trabalha é que faz a diferença.

Maitê quer acreditar que existam outros banheiros iguais. Igualmente, acredita que existam outros funcionários semelhantes a essa dedicada trabalhadora que dignifica a classe e a Instituição a qual pertence.

De qualquer sorte, dedica a ela esta homenagem pelo Dia do Trabalho, recém- comemorado.

Dias atrás, Maitê, em suas andanças pelo Parque, esteve no referido banheiro.

Parecia que entrara em outro banheiro. Não era aquele seu conhecido. O mau cheiro, naquele dia, era característico. O chão estava todo molhado. Aquela luz, que costuma irradiar-se pelo recinto, não existia. Tampouco, o perfume do incenso dando as boas-vindas a quem chegasse. A funcionária presente... Bem, não falemos dela.

NOTA: A homenageada, nesse dia, não estava presente. Era seu dia de folga.




segunda-feira, 20 de abril de 2009







A RESPOSTA ESTÁ NA FÍSICA?


Ah! O fogo do Sol... A placidez da Lua... O riso fácil de Mabel, a carranca de Orlando... Ah! A amabilidade de Ana, a grossura de Ramiro... Anita, tão íntegra; José, nem tanto... Mas complementam-se, dizem. Vivem harmonizados, parece. Tão diferentes, sussurram. Mas sempre juntos.

Já vai longe o ano de 1703, ano do Tratado de Methuen: aquele da compra do vinho português pela Inglaterra, em troca dos tecidos ingleses. Acordo bastante lesivo aos interesses de Portugal, pois os gajos importavam mais tecido do que exportavam vinho. É claro que, lá pelas tantas, houve um desequilíbrio do comércio com a Inglaterra. Sabem quem pagou a diferença? O nosso ouro. Pois é, o malfadado Tratado possibilitou a transferência da riqueza produzida no Brasil para a Inglaterra.

Já no século seguinte, a coisa ficou ainda pior. Com a abertura dos portos, saiu-se do colonialismo mercantilista português para uma dependência do capitalismo industrial inglês. Essas novas trocas comerciais em nada foram vantajosas ao Brasil. Pelo contrário, iniciaram o processo que tornaria a balança comercial do Brasil deficitária.

Circula pela Internet um relato feito pelo viajante inglês John Mawe que, naquela época, descreve a cidade do Rio de Janeiro:

“O mercado ficou inteiramente abarrotado; tão grande e inesperado foi o fluxo de manufaturas inglesas no Rio, logo em seguida à chegada do Príncipe Regente, que os aluguéis das casas para armazená-las elevaram-se vertiginosamente. A baía estava coalhada de navios, e em breve a alfândega transbordou com o volume das mercadorias. Montes de ferragens e pregos, peixe salgado, montanhas de queijos, chapéus, caixas de vidro, cerâmica, cordoalha, cerveja engarrafada em barris, tintas, gomas, resinas, alcatrão, etc., achavam-se expostos não somente ao sol e à chuva, mas à depredação geral; (...), espartilhos, caixões mortuários, selas e mesmo patins para gelo abarrotavam o mercado, no qual não poderiam ser vendidos e para o qual nunca deveriam ter sido enviados.”

Supondo-se verdadeiro esse relato, na essência, tem cheiro de atualidade essa descrição. Pois, nem sempre se compram coisas de que se precisa, como também nem sempre se dá o devido destino às mercadorias, deixando-as estocadas, entregues à incúria de quem deveria guardá-las.

Mas, voltando...

Será que os diferentes se atraem? Que é pura atração? Será que se completam?
Ah! Aqueles dois pares de olhos tão próximos e tão diferentes! Sentados lado a lado. Estariam ali colocados por pura atração? Suspeita-se que interesses os tenham ali postados, juntos, a prenunciarem grandes acordos, grandes parcerias futuras.

Oxalá a rainha dos mares não nos reserve algum tsunami! Aqui, pelo que se alardeia se navegará em modestas marolinhas.
Com certeza, aquele par de olhos azuis fez um contraste muito especial ao lado de uns olhos escuros, também especiais. Um olhar maroto, bem ao estilo do nosso povo. Aliás, depois desse encontro tão próximo, é urgente rever esta implicância com pessoas de tão belos olhos.
E pensar que até o sangue é azul, a contrastar com o dele, vermelho, plebeu. E que, assim misturado, deve ter deixado muita gente roxa de raiva.

Mas viva a Rainha! Viva o Cara! Viva o Brasil!
Afinal, após trezentos e poucos anos, devemos ter aprendido alguma coisa.

Ah! Os casais acima citados? Acredita-se que tenham interesses pessoais em jogo.
Quanto ao Sol e à Lua: é pura sincronia para a sobrevivência do planeta Terra, do Universo... ou sei lá!
Quanto à Física? É um título instigante, mas essa lei da atração só funciona na velha experiência das limalhas de ferro.









segunda-feira, 9 de março de 2009







O ENJOO


A zona é conhecida. Lá pras bandas do bairro Espírito Santo. Depois de Ipanema, antes do Veludo. É por ali. Seus pais pedem ao tio que pare o carro. A menina vai vomitar. Precisa vomitar. Eram tantas as bolachinhas que comia! Todas cobertas de manteiga. A camada de manteiga era quase mais espessa que a própria bolacha. Era uma comilona de tudo. Considerando o que comia, deveria ser bem mais gordinha. Mas era levemente cheinha de corpo. Ah! Costumava misturar coisas diferentes entre si, tipo puxa-puxa com pastel, salsicha com chocolate branco e por aí afora...

Portanto, vez por outra, dava-se mal. Mas, era uma criança saudável. Tinha em torno de nove, dez anos. Estudava em escola pública. Era excelente aluna. Mas, ainda brincava de boneca. E como brincava! Sozinha, pois não tinha irmãos. Era dona do pátio, do galpão, do seu mundo.

Observadora das lides caseiras, após o café da manhã, corria para o galpão para preparar o café para os seus filhos e para o pai deles. Tudo parecendo real. Eram responsabilidades que assumia como dona daquela “casa de bonecas” montada dentro do galpão, no fundo do quintal.
Espelhava-se na mãe, seu modelo naquele instante da vida. Brigava com os bonecos, seus filhos, quando esses desobedeciam. Tudo de mentirinha. Mas parecia verdade.

O importante é que, no fundo, não era verdade. Só parecia... No instante seguinte, já se entretinha com Rex, o cachorro da família. E logo, logo estava a arrumar a pasta com o material escolar, porque, à tarde, a escola esperava por ela.

Para lá chegar, tinha que percorrer uma espécie de servidão de passagem, que a vizinhança chamava de “bequinho”. A escola era numa rua paralela, atrás de sua casa. O tal “bequinho” era o acesso mais próximo.

Pois, perigo ali não havia. Nem em sua casa, rondava o perigo.

Ir à venda da esquina, onde comprava bananas e docinhos, também não causava apreensão a ninguém.
Costumava ir à venda, mais de uma vez ao dia, só pra comprar “branquinhos”. Aí, depois, acabava ficando enjoada de tanto comer. Era um enjoo próprio de quem come demais.

Era só comida demais.

Aninha lembrou-se, hoje, dessas cenas. Acha que não foi por acaso. Sua trajetória exitosa de vida leva a crer que teve a sorte de não ter enfrentado situações de risco. Risco de ver seu mundo do faz de conta transformar-se em uma brutal realidade.
Teve tempo de escolher o momento exato de parir. E sabem de uma coisa? Nem enjoar, enjoou. Nunca soube o que foi isso.

Enjoar mesmo só na época das bolachinhas “Lili” com manteiga.

Nesse Dia da Mulher, cercado de tantas comemorações, Aninha percebe que o caminho a percorrer ainda é longo.
Mas, desde já, causa-lhe enjoo essa violência perpetrada contra nossas meninas: que andam a enjoar antes do tempo.

Que vergonha!
Até quando?




quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009







ERA UMA VEZ...


...um castelo muito bonito,
Bem mais bonito que se dizia.
Tinha tantos quartos, mas parecia
Ninguém saber sua serventia.
Lá, lá, lá, lá... Lá, lá, lá, lá...
Lá, lá, lá, lá... Lá, lá, lá, lá...

Na ponta dos pés, espicha o corpo e, com dificuldade, alcança o terceiro vão. Acomoda-se como pode.

Deita-se levemente curvado, pois sua altura ultrapassa o comprimento desse espaço. Coisa pouca, diga-se de passagem. Para uma pessoa de estatura baixa ficaria, digamos, confortável. É claro, desde que não seja gorda. Mas isso é inimaginável nesses tipos que frequentam tais lugares. A largura também deixa a desejar. É, realmente, bastante estreito o vão. Ah! Na mesma extensão do comprimento, há uma paredezinha e, depois, outro vão, bem menor em comprimento: mais ou menos a metade do primeiro vão.

No espaço menor, guardam-se os papelões, os trapos, um saco, uma caneca... Maitê acha que é isso. Pra que mais?

A altura do “beliche” é ideal: longe do chão e, principalmente, protegido da chuva. Bem, não exatamente protegido dos pingos de chuva, se eles vierem de lado. Mas, pelo menos, não se fica sobre a poça d’água.

Na verdade, essa é uma moradia para quando a lua resolve mostrar a face inteira ou por pedaços. Aí, é possível até sonhar... Acredita-se que, em dias chuvosos, ou de frio intenso, existam outros vãos bem mais protegidos.

Mas, voltemos aos vãos iniciais. A cada vão maior, segue-se um menor: parte integrante do maior. Percebe-se que assim foram divididos pelos ocupantes. Portanto, para cada vão maior adquire-se a posse também do menor. É um vão adicional, para uso exclusivo do ocupante do vão maior. Considerando-se que existem quatro vãos maiores em cada coluna, e que essas são em número de cinco, temos a equação final que chega a vinte “beliches” ou vinte “cômodos”. Ah! Não esqueçamos do vão extra: um ganho a mais para cada “beliche”.

Esse layout é de um banco que é a cara do Brasil: é uma agência do próprio BB.

Pois é, Maitê, que por lá passa todos os dias, fica a refletir...

O mármore que reveste os vãos é de “quinta”. Mas tem serventia. E que serventia! O importante é que existam os vãos. Aos moradores não interessa de que material sejam feitos. Basta que existam.

Maitê, ao deitar, da beirada da cama, espicha o olhar e a vê. Esta noite ela está lá! Redonda, prenunciando chuva. Diz a crendice que, depois de lua cheia, sempre chove. Maitê espera que isso demore a acontecer. Para que dê tempo de sonhar... Porque quando a chuva despenca lá de cima, impiedosa, molhando os trapos até os ossos, desmancha qualquer castelo de sonhos. E, ainda, é preciso sonhar.

Era uma vez
...uma casa muito estranha.
Não tinha porta, não tinha nada.
Mas muita gente ali dormia.
E bem sabia pra que servia.
Lá, lá, lá, lá...Lá, lá, lá, lá...
Lá, lá, lá, lá...Lá, lá, lá, lá...

Aos pés da cama, Capitão, enroscado, espia a lua. Embora importante no nome, é apenas o cão sarnento de um morador. Seu único e fiel companheiro.








quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009






MENOS, MEU DONO, MENOS...


Desde o início, ele soubera que aquilo era uma furada. Ele que, por tamanho e conformação dos músculos, permitia-se dar saltos bastante ousados, percebeu, em determinado momento, que seu dono ia acabar se enredando, porque estava ousando demais, além da conta.

E olha que seus bigodes se eriçavam todos, quando seu dono pegava o celular e ia lá pro fundo do quintal a sussurrar coisas, que ele não entendia muito bem, mas que eram respondidas por Severino. Sabia que era Severino do outro lado da linha, porque seu dono repetia esse nome, dizendo coisas tipo: “fica frio”, “não vai dar rolo”, “eu seguro”, “eu entendo do riscado”, e por aí...

Essas conversas constantes ao celular, sempre afastado do pessoal da casa, já estava deixando Dona Josefa, sua dona, desconfiada do marido. Na realidade, andava enciumada, achando que havia outra mulher no pedaço.

Mas fazer o quê? Agora, depois que se tornara funcionário público, era pessoa importante por aquelas bandas. Ainda mais com o cargo que lhe haviam dado. Precisava estar sempre conectado com a repartição.

Mas o bichano sentia que rondava o perigo. A verdade é que as sobras de comida tinham aumentado. Pra quem vivia numa cacaca federal, até que seu dono tinha melhorado. Homem fazedor de dinheiro estava ali! Andava, como se diz, por cima da carne-seca. Na real, o bichano não conseguia entender bem essas coisas que estão sempre a rondar os humanos.

Mas, um dia, algo lhe deixou preocupado. Foi quando ouviu seu nome, numa conversa pelo celular entre seu dono e Severino. Ele, que conhecia aquela família há tantos anos, ouviu seu dono dizer que, pasmem: era um recém-nascido. Ele que até já ia ser pai! Isadora estava por dar à luz.

Alguma coisa estava acontecendo. Ou, ia acontecer. Estacou, atrás do pé de cinamomo, e ficou a ouvir. Seu dono virara um mentiroso, um trambiqueiro?

E parece que, naquela casa, só ele sabia disso. Era a única testemunha, auditiva, daquela armação. Ouviu, durante um bom tempo, toda a conversa.

Começava a entender porque seu dono, de uns tempos pra cá, andava diferente. Já não era o mesmo. Reconheceu, assustado, que seu dono andava ousando demais. O pior de tudo é que, pela conversa dos dois, parecia que ele, o bichano, tinha virado um guri, com sobrenome e tudo. Não estava entendendo mais nada.

O que intrigava é que eram conversas sempre em voz baixa, ao celular, lá nos fundos do terreno. Isso começou a lhe dar nuns nervos. Era mais ou menos como se sentia, quando resolviam fazer faxina na casa: ficava muito nervoso.

Cismado com essa sensação, andava ele mais inquieto que cavalo sarnento. Foi quando, numa tardinha, tornou-se pai. Eram três filhotes ao todo. Dali em diante, pelos próximos meses, nem Isadora e nem Dona Josefa lhe deram mais bola.

Pôde então se concentrar na figura do seu dono. Vivia mais grudado no homem que pepino no baraço. Achava que ele já andava até meio desconfiado. Mas as intenções do bichano eram as melhores.

Por vezes, seu dono estacava o passo, voltava-se e fixava seu olhar naqueles grandes olhos verdes. Parecia que procurava alguma coisa. Nessas horas, o bichano bem que gostaria de aconselhá-lo. Alertá-lo para os perigos de quem não possui a esperteza refinada, a agilidade reconhecida: um DNA fraco para lances tão arriscados.

Mas faltava-lhe o que sobrava em seu dono: uma boa conversa. Assim, sem poder comunicar-se, a não ser com os olhos, o rabo e uns débeis miaus, foi percebendo a cara de preocupação que, a cada dia, seu dono demonstrava. Já sentia que ele andava encrencado como barriga de guri novo.

Até que, numa manhã, bateram à porta. O bichano, já enrodilhado nas pernas de Dona Josefa, foi com ela atender a quem batia. Enquanto se deslocava, sentiu um calafrio a subir-lhe espinha acima. Seria mau presságio? Pois não é que o homem, que batera na porta, viera buscar o guri, recém-registrado no cartório da cidade, com nome igual ao seu, para levá-lo ao Posto de Saúde. Queriam pesá-lo... Imagina!

Ainda bem que Dona Josefa não deixou. Era só o que faltava acontecer com ele! Pensavam que ele era um nenê... Ele, que já era pai!
Aliás, Dona Josefa, coitada, não sabia da falcatrua do marido. Inocentemente, afirmou ali não existir criança alguma com aquele nome, a não ser o seu gato.

Passado o susto e já recolhido ao seu esconderijo, embaixo da casa, Billy entrou em profundas reflexões: o rolo parecia grande.

Então, era verdade? Como pudera seu dono fazer tão desastrada falcatrua? Coisa de amador... Imagina, a coisa poderia ter-se estendido por muito mais tempo. E, talvez, até nem fosse trazida a público. Agora, transformá-lo em um bebê, só poderia ter dado nisso. Se ele já fosse um guri de nove anos, ninguém ia querer levá-lo ao Posto para pesar...

Foi, realmente, uma mancada imperdoável. Todo mundo ali, naquela casa, saiu perdendo. Principalmente seus três novos filhotes, que já poderiam largar, na vida, melhor alimentados. Já seriam uns reais a mais no orçamento da família, considerando-se o novo filho registrado. Um auxiliozinho do Programa Bolsa Família. Mas agora, babaus...

Imagina, se sujar por tão pouco... Se fosse por muito, até valeria a pena. Afinal, parece que quanto maior o rombo, menor o constrangimento. E, também, menor a execração. Os exemplos estão por aí aos montes.

Ele bem que gostaria de ter avisado: menos, meu dono, menos...

Brincadeiras à parte, sete vidas tem o bichano. Seu dono tem apenas uma. E com ela tentou dar uma de “joão-sem-braço”, mas se enrolou mais que carrapicho em cola de cavalo. Acabou mais por baixo que umbigo de cobra e mais sujo que pau de galinheiro.

E pensar que seu dono era um privilegiado naquele mar de miseráveis a sua volta. Que feio!



Leia a notícia.





domingo, 4 de janeiro de 2009





UMA QUESTÃO DE PESO


Foi por pouco... Na segunda tentativa, o alvo foi mais ligeiro. A distância do alvo, claro, era considerável. E o peso, ou melhor, a massa do objeto era significativa.

Faltou ao arremessador uma melhor previsão de todos os elementos envolvidos nessa verdadeira “bomba” lançada naquele circo montado. Todos ali, perfeitas marionetes, reunidas, fazendo de conta que estavam a cuidar dos interesses coletivos. Os discursos, podem crer, eram de peso. Repetiam, à exaustão, a mesma cantilena mentirosa, visando aos interesses de castas que não precisam estar presentes. Aliás, nunca aparecem. Mas as marionetes a serviço estavam todas ali. O embuste, a desfaçatez, meus caros, perpetuam-se. As doses é que variam, bem como seu peso ao longo dos séculos.

Voltemos, por instantes, ao objeto arremessado, símbolo ofensivo dos mais significativos. Convenhamos que o arremessador poderia ter escolhido um objeto um pouco menor, com menos massa, com a metade mais ou menos, algo tipo 150 gramas. Seria a vez de a mulher mostrar a sua força, pelo menos para isso... Mas diante de sua condição naquela sociedade, acho até que seria menos ofensivo do que o representante masculino que, claro, deve ter mais valor. Com certeza, o peso ofensivo deve ser maior, sendo um “pisante” masculino.

Quanto ao alvo, considerando sua passagem, na adolescência, pelo Texas, mostrou-se à altura dos velhos heróis do faroeste americano. Sem arma, foi rápido, contando com a sorte, é claro, pois ali os efeitos especiais do cinema não estavam presentes. Mas, de qualquer maneira, desempenhou bem o papel: na tribuna, com um discurso de peso, e ao se esgueirar, com meneios rápidos de corpo.

Os detalhes não foram, previamente, estudados. Portanto, frustrou-se o objetivo final. Frustrou-se?

O gesto permanecerá. O significado, também. A ofensa não será esquecida. Nunca se saberá a real extensão dos desdobramentos para o arremessador. Nem, tampouco, a verdade embutida no gesto. Tudo foi e continua sendo uma questão de peso, na acepção da palavra.

Quanto às castas, continuam rindo à socapa...

Aliás, essas duas últimas expressões datam dos séculos XV e XVI, respectivamente.

Como se pode observar: tudo continua como dantes no quartel de Abrantes.
Outra expressão cunhada nos séculos XVII e XVIII.

Ou, porque não dizer: mudam as moscas...





assista ao ataque:


segunda-feira, 8 de dezembro de 2008






O PEDIDO DE VALENTE


Quando Valente dobrou a esquina daquela malfadada rua, já sabia o que o aguardava. Meses a fio ouvira aquela conversa. Agora era pra valer! Parece que a coisa era moda.

O que o assustava é que, se as coisas continuassem assim, perderia até sua principal característica. Seu faro, com certeza, iria perder-se em meio a tantos cheiros desconhecidos. Teria que exercitar-se, que reaprender os novos aromas que se anunciavam.

Valente avançava, cabisbaixo, rua acima. Nada mais seria como antes. Perderia a espontaneidade pra tudo. Ficaria embaralhado frente a uma parceira. E se ela também adotasse a mesma moda? Até que pra ela podia-se compreender tal revolução estética.

Valente, definitivamente, não se conformava com tais modernismos. Na verdade, as coisas deviam ficar como sempre tinham sido. Tudo bem definido: cheiros, cores, o visual de cada um, no original, de nascença.

E quando tivesse que levantar a perna? Será que teria alguma mudança? E quando estivesse a fim..., como identificaria a sua cara-metade “da hora”? Será que conseguiria definir o cheiro do prazer, em meio a tantos outros cheiros? Isso, decididamente, não ia dar certo. Ia acabar se confundindo. E daí? Babaus... Ia ser um salve-se quem puder! Por que tinham que inventar tais coisas?

Enquanto preparava-se para o sacrifício, ia meditando sobre os velhos e bons tempos.

Que saudade daquele quintal, lá no bairro Petrópolis, em que vagava por entre as árvores, tendo sempre ao lado Isadora, sua companheira. Sabia perfeitamente quando ela estava “naqueles dias”. E “aqueles” eram os melhores dias de sua vida. Tudo seguindo o seu curso natural. Nada de inovações. Tudo previsto e instintivamente perseguido.

Mas aí...dona Gertrudes, sempre tão carinhosa, um dia, resolveu entregá-lo à Beatriz, sua irmã, que o levou para morar com ela. Sabe onde? Num apartamento. A coisa mais horrorosa! Tinha sido levado para fazer-lhe companhia, pois ela enviuvara há pouco. Desse dia em diante, sua vida começou a mudar. E, para pior. Agora, porém, chegara ao fundo do poço. Sentia que, qualquer dia, acabaria virando Valentina. Com esses pensamentos sombrios, adentrou, a contragosto, na tal casa. Sentia que ali começaria sua derrocada como espécie.

Uma voz suave convidou-o a entrar:

-Por aqui, meu fofo! Beatriz voltaria, em três horas, para buscá-lo.

Dali em diante, viu-se rodeado por mais duas vozes meigas a com ele conversar. E, principalmente, a conversarem entre si. O que se sucedeu, a partir daquele momento, vale uma história e tanto.

Depois de muita conversa, resolveram iniciar a transformação de forma “light”. Nada muito agressivo!

Mergulharam-no numa banheira muuuuuuito cheirosa. Com as barbas de molho e o resto também, ficou a meditar por minutos nessa nova vida que se anunciava. Vira e mexe estaria nesse salão de horrores, novamente.

E era shampoo, condicionador... E dê-lhe água. De repente, aquela água foi sumindo para outra ir chegando. E o pobre ali mergulhado. O cheiro agora era bem definido: era de chocolate. Conversaram as moças entre si que era a hora da hidratação de chocolate. Pra que tanto cheiro? Pensou com seus botões: isso não vai dar certo...

Sentindo-se mais lambido que terneiro recém-nascido, foi retirado da banheira e levado para o soprador. E depois, claro, para o secador: que são coisas diferentes.

Daí partiram para um boa escovada e mais um spray perfumado, com o qual quase tonteou. Para finalizar, um laçarote cor-de-rosa pra segurar a franja teimosa. E com os olhos, agora, bem à mostra foi que avistou Beatriz chegando toda feliz.

A que ponto chegou! Que inveja do “alemão”! Ele é um amigo que circula pela rua onde Valente mora. Sempre de bem com a vida. Todos o conhecem e ele a todos cumprimenta, balançando o rabo: mais faceiro que pinto em quirela. Dão-lhe, todos os dias, o que comer. É freguês do boteco da esquina. Vive solto a vadiar. Não tem obrigações. Pode fazer cocô e xixi em qualquer lugar. Encontra-se, sempre que dá no jeito, com as gurias da zona, isto é, da zona onde mora. É bonito, aloirado, garboso. Vive, por assim dizer, sem frescuras. Isso é que é vida!

Agora, essa sua vidinha está se tornando um saco! Na verdade, o que mais o preocupa é a questão dos cheiros, dos odores misturados com os perfumes. Está perdendo até o apurado faro, seu ponto forte. E o pior...acredita que terá dificuldades, daqui pra frente, em distinguir aquele cheiro tão bem-vindo, que há tempo não mais encontra, por absoluta clausura. Já anda até destreinado! E se facilitar, poderá enganar-se feio. Já pensou? Que vexame!

Talvez o melhor seja mesmo acomodar-se em sua nova caminha e sonhar com a chapinha, a escova de morango ou chocolate e com a vinhoterapia pra pets. Disseram, lá na petshop, que vai revitalizar seu pelo através do poder antioxidante dos polifenóis contidos na uva, além de serem ricos em vitaminas A, C, e E.

A única dúvida é se isso vai torná-lo mais feliz. A clausura já se instalou mesmo. Parece não haver saída, senão deitar e gozar. Gozar? Isso é coisa pra geração passada. Essa nova espécie canina anda mais frustrada que os seus próprios donos. Aliás, já incorporaram todos os tiques e manias dos seus senhores. Sabe de uma coisa?

Se ficar muito difícil aguentar essa barra, Valente acha que vai exigir um apoio psicológico, ingressando nesses grupos de terapia para cães. Afinal, já é praticamente um ser humano! Escovam-lhe diariamente os dentes, faz xixi e cocô numa espécie de vaso sanitário, come salgadinhos, waffle com chocolate, tem à sua disposição toda a sorte de petiscos. O que mais querem? Que fale? Pô, aí seria demais... Mas, se fosse possível, diria a Beatriz que o trate com mais carinho, que o afague, que seja menos rude. Pois é isso que todo ser vivo mais quer. Não interessa essa formosura toda, que é só aparência, se não nos relacionamos com amor. E, se não for pedir muito, que lhe dê um pouquinho mais de liberdade. Afinal, a espécie precisa perpetuar-se. E disso vocês, humanos, entendem muito bem.