Todos ao redor queriam tocá-lo. Sua dona surpreendeu-se com
o interesse despertado. Queriam saber onde ela tinha adquirido aquele exemplar.
Os colegas, já adolescentes, cercaram-na para melhor poder
visualizar aquele belo livro. Tinha ele, inclusive, a assinatura do seu autor
na capa. Uma edição especial, preparada pela tradicional agência de publicidade
MPM, para a Editora Record, na quantia numerada de 0001 a 11000 livros. E aquele
era o exemplar de nº 1061. Tal livro tinha sido solicitado pela Professora de
Português, para leitura programada ao longo do ano.
O primeiro impacto foi fornecido pelo olhar, seguido pelo
toque, pelo folhear, pelo manuseio do livro com suas letras bastante graúdas a
cada início de capítulo, acompanhadas por desenhos ilustrativos referentes ao
texto que, aos poucos, ia se compondo. Uma obra impressa com cuidado e carinho,
como merecia seu autor, o baiano Jorge Amado.
No ano de 2012, comemorou-se o centenário desse reconhecido
autor. Portanto, vale muito a pena ter
em mãos uma obra, impressa em 1981, para comemorar os 50 anos de um fenômeno
literário que, à época, já fizera 70 anos de vida.
E o livro escolhido foi O MENINO GRAPIÚNA de Jorge Amado, um
livro de memórias, uma autobiografia, com ilustrações de Floriano Teixeira e o
retrato do autor por Carlos Bastos. A importância dessa obra revela-se com a
sua leitura, pois ali estão presentes todas as influências do meio onde o autor
nasceu e desenvolveu-se e da grande contribuição que recebeu do Padre Luiz
Gonzaga Cabral, Professor de Português, no colégio dos jesuítas, onde Jorge
Amado esteve internado por dois anos.
É importante a leitura desse livro, pois nos auxilia a
entender a extensa obra de Jorge Amado, toda ela fundamentada nas suas
primeiras impressões, quando ainda criança, passando por uma adolescência entre
jagunços, aventureiros, jogadores e recheada por sensações experimentadas junto
às casas de “mulheres da vida”, como ele próprio relata. Foi lá onde, segundo o
autor, acalentaram seus sonhos,
protegeram sua indócil esperança, deram-lhe a medida da resistência à dor e à
solidão, alimentaram-no de poesia.
Revela, a certa altura, que:
“Na literatura e na
vida, sinto-me cada vez mais distante dos líderes e dos heróis, mais perto
daqueles que todos os regimes e todas as sociedades desprezam, repelem e condenam.” (páginas 57 e 58)
Vale transcrever o capítulo 9, páginas 61e 62, em que o
autor afirma:
“Os líderes e os
heróis são vazios, tolos, prepotentes, odiosos e maléficos. Mentem quando se
dizem intérpretes do povo e pretendem falar em seu nome, pois a bandeira que
empunham é a da morte, para subsistir necessitam da opressão e da violência. Em
qualquer posição que assumam, em qualquer sistema de governo ou tipo de
sociedade, o líder e o herói exigirão obediência e culto. Não podem suportar a
liberdade, a invenção e o sonho, têm horror ao indivíduo, colocam-se acima do
povo, o mundo que constroem é feio e triste. Assim tem sido sempre, quem
consegue distinguir entre o herói e o assassino, entre o líder e o tirano?
O humanismo nasce
daqueles que não possuem carisma e não detém qualquer parcela de poder. Se
pensarmos em Pasteur e em Chaplin, como admirar e estimar Napoleão?”
O caráter universal de sua obra faz-se dos relatos de miséria,
ambição e poder que desconstroem a liberdade, bem como daqueles em que o bem, a
doçura e o humanismo fazem-se presentes. São tipos humanos que perpassam pelas
obras a demonstrar, por vezes, um profundo humanismo e, por outras, a face
obscura de que muitos são construídos. Isso é bem entendido por todos que o
leem, não importando a que parte do mundo pertençam. Seus livros foram
traduzidos em 55 países e para 49 idiomas.
Sua obra inicial tratava dos problemas sociais, das
injustiças, da política, das crenças e tradições de parte do Brasil e da
sensualidade de seu povo.
A partir de 1959, com GABRIELA, CRAVO E CANELA, sua produção
literária ateve-se não tanto mais aos temas sociais, pendendo para um enfoque
na crônica de costumes, nos tipos populares, nos poderosos coronéis, nas
mulheres sensuais e nas prostitutas.
Em seguimento, passaram seus personagens a retratarem características
bem brasileiras, como a contradição entre a seriedade e a irresponsabilidade, o
prazer e o dever, a regra e o famoso jeitinho.
Jorge Amado nasceu em Ferradas, povoado do município de
Itabuna, ao sul da Bahia, a chamada terra grapiúna. Sofreu essa várias
transformações, tendo passado pelo ciclo da cana-de-açúcar e, por último, pela
opulência do ciclo do cacau. Uma região, desde sempre, habitada pelos seus
nativos e por toda a sorte de desbravadores e comerciantes, gente de fora e de
outras regiões do país (sírios, libaneses, sergipanos, suíços, capixabas), num
caldo de cultura perfeito para um “escritor” que desabrochava aos 11 anos,
segundo o Padre Cabral.
Quando lhe deram como tarefa escolar a descrição tendo o mar
como tema, o mar de Ilhéus foi o seu escolhido. Na aula seguinte, vejam o que o
Padre Cabral anunciou, conforme palavras do próprio autor às fls. 118:
“Na aula seguinte,
entre risonho e solene, anunciou a existência de uma vocação autêntica de
escritor naquela sala de aula. Pediu que escutassem com atenção o dever que ia
ler. Tinha certeza, afirmou, que o autor daquela página seria no futuro um
escritor conhecido. Não regateou elogios. Eu acabara de completar onze anos.”
Daí em diante, o menino Jorge Amado, graças aos livros da
estante pessoal do Padre Cabral, pôde conhecer “As Viagens de Gulliver”, por
primeiro, depois os clássicos portugueses, ingleses e franceses.
Origina-se dessas experiências de leitura seu amor aos
livros, o que forneceu substrato à sua própria criação literária.
Para conhecer esse autor, nada melhor do que estudá-lo com
mais profundidade. E nisso o acerto da Professora Neide ao indicar essa obra em
especial, pois ela, pela própria voz do autor, revela as bases de tão profícuo
escritor.
Como o autor relata, às páginas 112 e 113, o Padre Cabral
não se importava com a pura análise gramatical do poema OS LUSÍADAS. Ele se
detinha, para deleite e encantamento dos alunos, no poder da declamação, da
força do verso e da prosa, despertando a sensibilidade “para a sedução da literatura feita de palavras vivas e atuantes.”
Agora, além disso, o que a nós, também, interessa nessa
crônica é demonstrar a importância da apresentação daquilo que se vai ler, para
que se aprenda a gostar de ler. E, igualmente, de quem vai motivar e de que
maneira fará isso. Esses adolescentes são leitores em potencial, mas que não aprenderam, ainda, a
gostar de ler. Essa tarefa é árdua, mas vale muito a pena abraçá-la.
Ter em mãos um livro e poder lê-lo em um lugar escolhido,
aconchegante, folheá-lo, fazer anotações, quando se fizer necessário, é
vivenciá-lo de forma profundamente íntima, tão íntima quanto às anotações que o
leitor vai sobrepondo às ideias do autor e que revelam, muitas vezes, a
importância de determinadas passagens à sensibilidade de quem está lendo.
Ler um livro é também tocá-lo, senti-lo, encantar-se com as
imagens. E quando tudo isso se junta a um texto de traços universais, a leitura
deixa, com certeza, um sabor de quero mais.
Parabéns ao Centenário de Jorge Amado!
Parabéns à Professora Neidi que escolheu a obra O MENINO
GRAPIÚNA!
Todos nós, no fundo, temos um tanto desse menino, pois ele
tem traços universais de rebeldia, encantamento, imaginação, lembranças, medo,
audácia, esperanças, aventura, curiosidade, inquietude, solidão, tristeza,
alegria e muitos sonhos. Sonhos que acalentava e que deixa claro, já como escritor,
no último parágrafo do capítulo 16, página 108, do citado livro.
“Sonho com uma
revolução sem ideologia, onde o destino do ser humano, seu direito a comer, a
trabalhar, a amar, a viver a vida plenamente não esteja condicionado ao
conceito expresso e imposto por uma ideologia seja ela qual for. Um sonho
absurdo? Não possuímos direito maior e mais inalienável do que o direito ao
sonho. O único que nenhum ditador pode reduzir ou exterminar.”
E para demonstrar a versatilidade do escritor, ouçam a música
É DOCE MORRER NO MAR, composta em parceria com Dorival Caymmi.
PS: As últimas informações dão conta de que o livro vem
sendo emprestado aos colegas por ordem de chegada do pedido.
Sua dona anda
arrasando...
É Doce Morrer no Mar – Cesária
Évora e Marisa Monte
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