No pátio, uma pereira, uma goiabeira, um caquizeiro e uma
pequena parreira. Canteiros verdes de hortaliças e um gramado, também verde, em
frente à casa. Uma casa toda verde com janelas também verdes, num tom mais
claro. Hortênsias verdes e rosas sob a janela do quarto da frente.
A casa, de frente para o leste, recebia o sol que por lá
acordava todos os dias, pintando de amarelo vivo o que encontrava pela frente.
E os olhos? Os olhos tinham espaço para buscar o céu, muito
azul, que emoldurava a tudo e a todos.
Quando a professora solicitava um desenho, o preferido era
aquele que costumava encher-lhe os olhos com referenciais que dispunha ao redor.
Basicamente, duas elevações de terra, totalmente verdejantes, um sol brilhante
despontando por entre os dois morros, e um céu, inteiramente azul, com algumas
nuvens passeando ao deus- dará, para lá e para cá. Acrescentava uma casinha ao
lado direito do desenho e, vez por outra, um laguinho, onde uma criança, de
costas, jogava uma pedrinha, fazendo a água romper-se em mil círculos. Pura
imaginação!
As cores básicas eram sempre o verde, o amarelo e o azul,
mais umas pinceladas de marrom para representar o tronco de uma árvore,
estrategicamente colocada, toda verdejante, ao sopé do morro. Tudo conforme o
desenho que segue abaixo.
E não se vivia no campo, não. Era numa cidade que se vivia.
E essa cidade era a capital dos gaúchos.
Foi o olhar criança ou a cidade que se modificou?
O olhar infantil, curioso, perscrutador: sinto-o ainda o
mesmo. Faz parte do universo pessoal construído há muito tempo atrás. Agora, a
cidade, com certeza, não é mais a mesma. Mas ela possui ainda todos os
principais referenciais que a fizeram conhecida e amada.
Por que não resgatar e revitalizar todos os seus principais
pontos turísticos, em especial os que dizem respeito à natureza, aqueles que se
encontram a céu aberto. Os que permitam que crianças de hoje possam com ela
dialogar. Que a conversa não seja apenas com a máquina, com uma natureza apenas
virtual.
Olhar o céu em noite de lua cheia e, naquela esfera toda
branca, por entre aquelas imagens que ela nos presenteia, enxergar, em
imaginação, por exemplo, uma orquestra inteirinha, com músicos tocando! Que
tal? Para quem já aprendia um instrumento musical, à época, não era muito
estranho respeitar silêncios, pausas que a partitura exigia e, é claro, até
imaginar uma orquestra tocando na lua.
Isso não é para qualquer criança. Ela tem que habituar-se a
olhar para a natureza.
E isso não é saudosismo, nem romantismo.
É simplesmente propiciar a esse ser a possibilidade de
exercitar a sua sensibilidade para aquilo que o seu olhar alcança, mesmo
estando tãããoooo distante o objeto do olhar, como a lua.
O que importa é exercitar a emoção/contemplação, pois serão esses momentos que continuarão a
ressoar nos pequenos tempos depois, religando-os à mãe Natureza, já que a outra
se terá ido.
Diante de tantos tons enegrecidos, que nos chegam pelos noticiários
do mundo, fica difícil iluminar o olhar, quando, também por aqui, observa-se
tanta sujeira e tanto descaso pela cidade. Temos com urgência de procurar
cultivar um olhar de admiração por aquilo que nos cerca, oferecendo espaços de
convivência ao ar livre, já que os espigões nos tiram a possibilidade de
enxergar um pé de goiabeira num canto do pátio. E o próprio céu está cada vez
mais reduzido a estreitos pedaços ao olhar de quem o busca.
E quem o busca? Acredito que apenas aquele adulto que um dia,
quando criança, teve espaço físico, orientação adequada, e até, às vezes, certo
tédio que o levou a despertar a imaginação, criando-se, assim, momentos de
imersão em seu próprio mundo mágico. E que teve, dessa maneira, despertada a
sensibilidade para o aparentemente sem sentido, como acompanhar com o dedinho a
gota de chuva que escorre pela vidraça, o seu pingar suave sobre o telhado, ou
a completa sinfonia da chuva com trovões e tudo mais que a acompanha.
E cá estou eu a carecer de mais verdes, amarelos e azuis.
Como estarão nossas crianças? Como estará sendo despertada a
sensibilidade para o entorno? A água que bebem, a sombra da árvore, o canto do
bem-te-vi e as estrelas no céu serão objeto de admiração? Pousarão o olhar,
terão a atenção voltada para esses elementos circundantes? Acompanharão as
nuvens com seu desenho caprichoso que vai formando figuras conhecidas nossas? A
imaginação serve para isso!
Como poderão ver despertada essa sensibilidade se estão
presas a uma tela, qualquer que seja ela, recebendo um pôr do sol com a
sensibilidade de quem o criou, através de um aplicativo X?
Diante desse quadro, vamos, pelo menos, melhorar os espaços
de que dispomos, para que nossas crianças possam acompanhar o voo e o grasnar
dos nossos papagaios selvagens, ouvir o canto dos bem-te-vis, observar o voo
rasante das andorinhas em final de tarde, a gota d’água que cai daquela folha,
que esteve a chorar durante a noite, aquela nuvem que corre atrás da outra só
para, logo ali, juntarem-se formando um desenho que cada um vai imaginar o que
é. Tudo de acordo com as suas vivências e a sua própria sensibilidade. É
necessário parar um pouco de clicar, para deixar a imaginação surfar sozinha,
ajudando-a a construir o universo próprio de cada um.
Governantes, é imperioso cuidarmos das nossas praças, das
nossas árvores, verdadeiras reservas de ar puro, de saudável convívio e de
último baluarte para que se mantenham vivos os tão necessários espaços para
contemplação. Tudo em prol de uma melhor convivência consigo próprio e com o
outro.
Foi por isso que, ao ver a fotografia estampada no Jornal
Zero Hora, dias atrás, lembrei-me dos verdes, amarelos e azuis da minha
infância. Tendo a Ponte de Pedra ao fundo, encharquei-me com aquelas cores e
meus olhos tornaram-se o espelho d’água refletindo todas elas, já tão minhas
conhecidas.
Pois foram essas exatamente as mesmas cores que predominaram
na lindíssima fotografia, reproduzida abaixo.
E Porto Alegre?
Temos que mantê-la alegre, a qualquer custo, pois esse
adjetivo é o que enfeita o substantivo, assim como a cor enfeita a pintura.
E essa, nesse caso, é natural.
Que bela imagem!
Ponte de Pedra ou dos Açores
Largo dos Açorianos
(Foto: Dani Barcellos/Especial)
Largo dos Açorianos
(Foto: Dani Barcellos/Especial)
Trem das Cores – Caetano Veloso
As Cores de Abril – Vinicius e Toquinho