Quer algo que está em desuso? O assobio.
E eram tantos os tipos de assobio, quanto os tons
diferenciados que os caracterizavam.
Havia aqueles que faziam as moças, de antigamente, quase
tropeçarem. Tomadas de surpresa pelo assobio galanteador, apressavam o passo ou
o diminuíam, dependendo do momento e do lugar. E a autoestima ia às alturas.
Hoje, a coisa é mais explícita. O assobio cedeu lugar à palavra. Por sua vez,
acredito que ela tenha perdido a carga imaginativa que o assobio despertava.
Havia, também, quem costumasse assobiar para chamar alguém
ou a atenção dessa pessoa. Hoje, essa prática cedeu lugar a um clique no
celular que, com certeza, despertará a rápida atenção de quem estiver sendo
chamado.
Ensina o dicionário que o assobio é um som agudo produzido
pelo ar comprimido entre os lábios.
Agora, se existir entre os lábios um apito, teremos,
igualmente, um assobio que soará por meio do sopro. Esses apitos ainda
encontram-se entre nós com grande frequência na condução de manobras, na
orientação do trânsito, em jogos e competições.
Houve, porém, o conhecido apito do afiador de tesouras que,
hoje, está praticamente extinto. Raramente, ouve-se algum.
Outro velho conhecido era o apito das fábricas, coisa do
passado, bem como o das locomotivas, o dos bondes. Todos ficaram perdidos na
poeira do tempo. Aliás, Noel Rosa compôs o famoso samba Três Apitos, em 1933,
que fez grande sucesso nas vozes de cantores da época. Lá aparecem os apitos da
fábrica e a referência aos apitos dos guardas-noturnos, tão conhecidos naqueles
tempos. Maria Bethânia gravou esse samba, em 1966, cuja letra pode ser ouvida
no vídeo abaixo.
Ah! Tem o assobio do vento, lúgubre, que causa certo
desconforto e até assusta. Claro que gaúcho não se assusta fácil e está
acostumado com o assobio do minuano, atravessando as frinchas dos galpões.
Tem, também, por essas plagas o famoso Milongão Pra Assobiar
Desencilhando.
Ambos os assobios, transformaram-se em músicas do
cancioneiro gaúcho, conforme vídeos que seguem.
Alguns pássaros, como a Calopsita, assobiam, falam e até
cantam. Ouçam este pássaro assobiando o Hino Nacional Brasileiro e, logo após,
“falando”, isto é, repetindo frases para as quais foi treinado, em vídeos
abaixo.
Entre nós, humanos, existem aquelas pessoas que entram em
casa assobiando. Conheci algumas. Parece estarem sempre de bem com a vida. De
bem consigo, eu diria.
Havia, também, aquele assobio, na frente de casa, que só ela
reconhecia.
Bem antigamente, o assobio de reprimenda para que o cusco
não fizesse algo que não devia. O assobio, hoje, foi substituído pela voz
materna de “meu amor não faça isso”.
Agora, um assobiar que não se cansa jamais de assobiar é o
de um cidadão que percorre, há bastante tempo, o bairro Menino Deus, um dos
mais tradicionais da nossa Porto Alegre.
É uma pessoa franzina, de baixa estatura, de meia-idade, que
pedala sua bicicleta recolhendo latinhas para vender nos galpões de reciclagem.
Os sacos vão pendurados ao redor da bicicleta e vão se enchendo sempre ao som
do assobio de seu condutor.
Esse assobio é encantador porque nos acorda, nos sacode, nos
faz refletir sobre o que sustenta um ser tão apequenado de posses materiais,
mas tão grandioso no seu enfrentamento com o dia a dia.
Em conversa com o cidadão, percebe-se que é uma pessoa
plenamente hígida de suas faculdades mentais, responsável, e que tem uma
receita simples e básica para tanta disposição: tem saúde.
Segundo ele, quando se tem saúde, tem-se tudo. O resto
vai-se arranjando, do jeito que dá. É um cidadão com residência fixa e com uma
esposa que recém aposentou-se, ao que parece pela condição de idosa carente.
Ele, por sua vez, aguarda ainda mais uns dois ou três anos para se aposentar.
Não sei se será pela mesma forma.
Não me perguntem como é a casa desse cidadão. Sei onde mora,
embora não tenha ido visitar tal rua, ainda. Seja de que tipo for, está lá, no
mesmo endereço, por já 30 anos, segundo ele.
Pois é, esse assobio vale muito, vale ouro para ele próprio
e para quem o ouve passar, vários dias na semana, pelo bairro.
E quem dá cor e vida a esse assobio, cujas melodias, embora
não perfeitamente identificáveis, mas todas em tons maiores como manda a
alegria, é um cidadão de bem com a vida, de bem com o mundo. Declara-se feliz,
pois possui o bem maior que o trouxe até aqui, até hoje: sua boa saúde.
Acredito que ela o acompanhará até os seus últimos tempos.
Como tudo o resto que por aqui adquiriu ficará por aqui,
desde as latinhas até o pouco que conseguiu juntar em haveres, o que
permanecerá será mesmo a lembrança da figura singela, porém marcante. Não por
possuir demais, mas por possuir a consciência do único bem maior: a nossa
saúde.
A nós todos cabe, apenas, homenagear o dono desse assobio.
Que ele continue despertando a atenção, dos que com ele
cruzam, para o essencial da vida: estar em paz e ser feliz.
É! Estamos precisando de mais gente assobiando.
Três Apitos - Maria Bethânia
Quando Sopra o Minuano – Os Serranos
Milongão Pra Assobiar Desencilhando – Luiz Marenco
Calopsita assobiando o Hino Nacional Brasileiro
Calopsita falando